Arte, ciência e (des)humanização da Medicina

É mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que a doença que a pessoa tem”
Hipócrates

“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”
Carl Jung

Gostaria de refletir com o leitor sobre o distanciamento de alguns profissionais médicos, que não se envolvem, não se comprometem e nem acolhem os seus pacientes como deveriam. Tradução: são desumanos!

Na verdade, refiro-me às muitas queixas que recebo no meu próprio consultório, acerca destes comportamentos inadequados de alguns colegas, que só veem a Medicina como possibilidade de lucro, e fazem da Medicina um comércio.

Graças a Deus temos ainda ilhas de excelência e de boas práticas médicas entre bons, nobres e respeitados colegas. Mas, e os demais? Às vezes fico até constrangida quando tomo conhecimento, ou mesmo quando sou testemunha, de algumas práticas.

E aí me vem a questão da formação médica. Onde estamos errando? O que podemos fazer de diferente? Onde o humanismo se perdeu?

Como podemos resgatar o fio da meada, embaralhado inclusive pelos conflitos de interesse que o médico tem, por exemplo, com a indústria farmacêutica?

Este é um tema que podemos discorrer no futuro e que considero uma vergonha para a nossa categoria, que já naturalizou as relações promíscuas com os laboratórios.

É preciso elencar os mais variados aspectos humanísticos que fazem da Medicina, para além da ciência, uma arte. Enquanto a ciência lida com competências técnicas com objetivos de cura, os elementos artísticos visam a empatia e o cuidado que precisamos oferecer ao nosso paciente.

Daí decidi apresentar aos meus alunos de Ética Médica a arte como instrumento de aprendizagem, e é nosso objetivo também tentar entender a arte em toda a sua capacidade caleidoscópica através da música, da dança, do teatro, do cinema, da fotografia, das artes plásticas, tais como pintura, desenho, escultura, artesanato, entre outras ações, que podem gerar mais cores e nuances às boas práticas em saúde.

Mais cores e nuances quer favorecendo a relação médico-paciente, estreitando laços, quer imprimindo movimentos que geram maior adesão ao tratamento, ou ainda como instrumento terapêutico para o paciente, assim como uma válvula de escape para um maior equilíbrio mental dos próprios profissionais e cuidadores.

Eu não inventei isso. Muitas escolas médicas já começaram a trabalhar com as artes na formação acadêmica e perceberam que estas ajudam os estudantes de Medicina a aprimorar suas habilidades de observação, comunicação e os tornam sujeitos mais empáticos.

Entendemos que o envolvimento dos estudantes de Medicina com as artes aumenta a exposição individual à múltiplas experiências sensoriais que aguçam o desenvolvimento cognitivo e neurológico e principalmente, potencializam o seu crescimento como sujeito.

Ou seja, a arte pode ser um instrumento sensibilizador e facilitador do próprio processo ensino-aprendizagem na forma de se lidar e entender a complexa subjetividade dos nossos pacientes e a natureza daquilo que é próprio do ser humano.

Não é por acaso que a introdução das artes no currículo médico tem despertado interesse crescente no mundo inteiro e tem sido objeto de estudos com vertentes humanísticas e espiritualizadas. Através dos saraus promovidos pelos meus alunos na disciplina Ética Médica, na UFS, e por meio da análise de obras de arte de artistas mundiais consagrados, ou análise de produção autoral dos próprios estudantes, temos exercitado a promoção do significado humanístico de compromisso e aliança terapêutica com os pacientes, despertando sensibilidade e reflexões, inclusive sobre a morte, que irão agregar valor às suas competências clínicas no seu desenvolvimento técnico-científico.

Nas nossas aulas, trago também, o cinema como instrumento de humanização. O cinema tem vocação como recurso didático humanizador por ser uma ferramenta que permite a correlação dos filmes com a prática e a ética médica, os valores de um exercício profissional elegante e respeitoso, que essencialmente não fira a dignidade dos nossos pacientes.

A nossa intenção com estes experimentos é fazer com que estes alunos que chegam no curso de Medicina com um pensamento pragmático e lógico, liberem a sua criatividade, imaginação, questionem e pensem de forma crítica, e possam experimentar novas possibilidades e percepções que serão importantes na vida profissional.

Além disso, é perceptível o genuíno prazer que os alunos retiram destas práticas. Que eles não se deixem contaminar por um currículo oculto, talvez perverso, de exemplos de médicos, às vezes seus próprios professores, automatizados pela rotina, que funcionam sem pensar, não exercem o autocuidado e esquecem a delicadeza da arte médica, muitas vezes pensando apenas nos resultados financeiros.

Lidar com a própria espiritualidade ou estimular a do seu paciente, requer aspectos humanísticos bem desenvolvidos. As artes podem servir de instrumentos que fomentarão as habilidades de comunicação, trarão bons sentimentos e uma percepção genuína da importância dos valores que envolvem a subjetividade das biografias dos seus pacientes, que precisam ser valorizadas, estes sim, perfeitas obras de arte divinas, únicas, que exigem do médico uma escuta e uma interpretação adequadas de seu sofrimento.

As artes e o exercício da espiritualidade favorecem aos futuros médicos, legando-lhes melhores e maiores habilidades de comunicação, pois transmitem confiança e descortinam novos sentidos e trazem possibilidades de novos conhecimentos, além de se tornarem instrumentos de cura.

Ciência e humanização não podem caminhar dissociadas. Deve haver sempre um equilíbrio entre a técnica e a captura da alma do paciente, para uma maior compreensão das suas dores, via sensibilidade de um médico, que tal qual um artista, valoriza o Divino, refletido na arte.

Sou otimista. Porém, sei que só saberemos dos resultados deste investimento em arte, que proponho aos meus alunos hoje, no bem a posteriori. O futuro dirá se ainda resta esperança de que as boas e velhas práticas médicas perseverem e os pacientes sejam tratados com respeito e a dignidade que merecem. Que o amanhã chegue logo!

originalmente do JLPolitica.com.Br

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