Complexidade do aborto: um olhar humanista

Não se trata de defender o abortomas de defender a vida das mulheres que recorrem a ele.

Eliane Brum

A questão do aborto sempre esteve no cerne dos debates éticos, legais e de saúde pública. Recentemente, o presidente Lula por quem não nutro simpatia, mas por quem rezo para que tenha sabedoria e que como líder da nação, saiba guiar o nosso destino, abordou um ponto crucial sobre as penalidades desproporcionais enfrentadas por mulheres que optam pelo aborto, trazendo à tona uma discussão que exige sensibilidade e um olhar humanista.

É importante reconhecer que, enquanto sociedade, precisamos acolher e não julgar essas mulheres. Vamos explorar a complexidade dessa questão, tendo sempre em mente a epígrafe de Eliane Brum: “Não se trata de defender o aborto, mas de defender a vida das mulheres que recorrem a ele.”

O Projeto de Lei 1904/24, atualmente em análise na Câmara dos Deputados, propõe equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. Essa proposta altera o Código Penal, que hoje não pune o aborto em caso de estupro e não prevê restrição de tempo para o procedimento nesses casos. O código também não pune o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.

Esse projeto ignora a complexidade e as nuances envolvidas nas situações de abuso sexual, punindo duplamente a mulher que já é vítima de um crime hediondo. Se uma mulher não consegue realizar o aborto antes das 22 semanas, isso geralmente ocorre devido a falhas no sistema de saúde que não a acolheu adequadamente. Agora, além de serem vítimas de estupro, essas mulheres enfrentam a criminalização por buscar um direito que lhes é assegurado em situações de desespero.

Como mulher e psicanalista, mesmo sendo contra o aborto, corro o risco de ser execrada pelo meu ponto de vista, mas não posso me omitir quando homens legisladores votam em uma pauta de costumes de forma hipócrita e eleitoreira, oprimindo mulheres vítimas de estupro. Agora, além de terem seu direito ao aborto negado, são criminalizadas.

Vivemos em um estado laico, onde as crenças pessoais não devem ditar as leis que regem o corpo de uma mulher. As mulheres que recorrem ao aborto fazem isso por diversas razões, muitas das quais estão além do nosso julgamento. O fato é que o aborto existe e continuará a existir, independentemente de ser legal ou não. A diferença reside nas condições em que é realizado. As mulheres ricas conseguem acesso a clínicas seguras, enquanto as pobres, muitas vezes negras, enfrentam procedimentos perigosos e insalubres.

Essa desigualdade é inaceitável em uma sociedade que preza pela justiça e equidade. A saúde pública precisa se adaptar para acolher essas mulheres, oferecer-lhes segurança e apoio, ao invés de criminalizá-las. A maior causa de morte materna, hoje, é o aborto inseguro, um problema que pode ser mitigado com políticas de saúde mais inclusivas e empáticas.

Como médicos, nosso papel é cuidar, acolher e proteger. Não somos juízes, e não cabe a nós julgar as decisões pessoais das mulheres. Devemos estar ao lado delas, oferecendo apoio médico e emocional. A criminalização do aborto não impede que ele aconteça; apenas o torna mais perigoso. Se os homens pudessem engravidar, talvez a legislação fosse diferente, mais compassiva e realista.

Voltando à epígrafe de Eliane Brum, é essencial refletir sobre o que significa “defender a vida das mulheres”. A defesa da vida não se limita à proteção do feto, mas abrange a saúde e o bem-estar das mulheres que, por inúmeras razões, recorrem ao aborto. Defender a vida é garantir que nenhuma mulher morra em decorrência de um procedimento inseguro. É assegurar que elas tenham acesso a cuidados médicos de qualidade, independentemente de sua classe social.

Estamos diante de um problema de saúde pública que exige uma abordagem humanista e realista. A criminalização do aborto não resolve a questão; ao contrário, agrava-a. É preciso que a legislação reconheça a realidade das mulheres e trabalhe para oferecer-lhes segurança e dignidade. Aplaudo o presidente Lula por finalmente abordar essa questão com a seriedade que ela merece. Antes tarde do que nunca!

Em um estado laico, cada um cuida de sua fé, mas as políticas públicas devem cuidar da vida de todos. É hora de deixarmos de lado os julgamentos e trabalharmos juntos para proteger a vida das mulheres, garantindo que todas tenham acesso a cuidados médicos seguros e dignos.

Como dizia Eliane Brum, “não se trata de defender o aborto, mas de defender a vida das mulheres que recorrem a ele.” Que possamos, como sociedade, acolher essas mulheres com empatia e oferecer-lhes a proteção que merecem.

originalmente do JLPolitica.com.br

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