Não tenham medo. Estou trazendo boas-novas de grande alegria para vocês, que são para todo o povo:
hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. Isto servirá de sinal para vocês:
encontrarão o bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura.
Lucas 2:1-14
Desde sempre, para mim, celebrar o nascimento de Jesus Cristo, no dia 25 de dezembro, constitui-se a festa mais esperada e a mais linda do mundo. O Natal foi instituído pela Igreja Católica no ano de 350 pelo Papa Júlio I, ainda que na Bíblia, nos evangelhos de Mateus e Lucas, não existam registros sobre o dia exato em que Jesus nasceu em Belém. Mas, não importa, o que conta mesmo é que o Natal significa paz, alegria, fraternidade, generosidade e gratidão.
Os festejos começavam no início de dezembro quando eu era, ainda muito menina, convidada a ajudar a montar a árvore de Natal, um dos símbolos mais populares deste período. A árvore era linda e gigante, ou seja, creio que fosse, pois certamente era maior do que a minha estatura. Os enfeites eram de vidro muito fino e frágil, e eram extremamente coloridos, com destaque para o vermelho e o dourado. Eram de múltiplas formas e os que mais se sobressaiam eram as mais variadas bolas de diversos tamanhos e ricos detalhes e ainda, as estilizadas estrelas, que remetem àquela que, segundo o relato da Bíblia, no Evangelho de Mateus, guiou os Três Reis Magos até o local do nascimento de Jesus.
Compenetrada na minha responsabilidade, devo ter quebrado algumas poucas destas peças ao longo dos anos, mas vovó Toinha e tia Cila nunca brigavam comigo. O pisca-pisca era cheio de luzes coloridas e elas compunham um conjunto que me fascinava.
A véspera de Natal era também o aniversario de Tia Cila. Não lembro de nenhum Natal sem a presença dela até a sua despedida final. Não lembro de bolo de aniversário, pois a comemoração era da vinda de Cristo, nosso salvador.
Em torno das 22h do dia 24, saiamos de casa e íamos até o centro industrial de Campina Grande, com titia ao volante do seu possante fusca. Este passeio era obrigatório e fazia parte do ritual natalino na minha cidade natal. Lentamente o fusquinha deslizava pelas alamedas daquele bairro e nos deslumbrávamos com aquele maravilhoso festival de luzes, criatividade e cores com uma decoração natalina nas fachadas e telhados de cada fábrica, nos encantando. A cada vez era muito mais bonito que nos anos anteriores. Eles sempre nos surpreendiam positivamente.
Só encontrei paralelo às luzes campinenses, nos meus 18 anos, quando fui a Las Vegas pela primeira vez e estivemos na Fremont Street, onde todo o esplendor e glamour no estado de Nevada havia nascido: uma rua bem agitada com muita música, artistas de rua, com hotéis de tetos iluminados e ruas acarpetadas, cheia de lindos cassinos e bares. Claro que aquela cidade sempre se supera, e quando lá voltei muitos anos depois, o point era a Strip de Las Vegas ou Las Vegas Boulevard, como também é chamada a via mais fotografada e visitada do mundo, onde ficam os temáticos hotéis e cassinos. É, queridos amigos, o parque industrial de Campina Grande foi no meu imaginário infantil, um precursor das luzes de Las Vegas.
Depois deste maravilhoso tour pelo centro industrial, era hora de irmos à Missa do Galo que é o nome dado pelos católicos de língua latina à Santa Missa de Natal, celebrada na véspera de Natal e que começa exatamente à meia noite. O Papa São Telesforo no ano 143 instituiu esta celebração e os papas subsequentes perpetuaram-na na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Desde o século IV, um hino latino cantado nesta cerimonia dizia que Jesus nascera a meia noite. O galo era considerado sagrada no antigo Império Romano e tem valores simbólicos, quais sejam, testemunho cristão, vigilância e fidelidade e por isso nos campanários das antigas igrejas existem as figuras do galo.
Depois da missa, eu estava exaurida, mas ao chegar em casa ainda havia a ceia natalina. Era o momento onde aquele mini núcleo familiar se confraternizava e vovó nos servia o esperado panetone (eu amava aqueles pedacinhos de frutas cristalizadas naquele pão dos deuses) e, claro, o peru. Aquele peru tinha sido comprado em algum sábado na feira, por vovó. Eu sempre a acompanhava na feira e adorava estar ao lado dela nestas ocasiões. Tinha sempre um adolescente já conhecido, esperando por ela, com um cesto enorme na cabeça e que fazia o carrego das compras. Ela era muito popular e extremamente simpática, alegre e extrovertida. Acho que papai herdou um pouco destes atributos. Todas a conheciam na feira e já estavam esperando Dona Toinha, com frutas, verduras, carne, e um rolo de fumo bem escolhidos e previamente reservadas para a famosa freguesa.
O nosso mais tradicional prato das ceias natalícias, o peru, tinha sido embebedado, literalmente, antes de ser sacrificado e servido naquela noite especial acompanhado de rabanadas. Dizem que essa tradição das fatias douradas, começou porquanto a necessidade de se reaproveitar o pão “dormido”, elemento sagrado e simbólico do corpo de Cristo. Por outro lado, diz a lenda que uma mulher que deu à luz e come desta fatia, produz mais leite, daí a explicação pela qual vovó chamava as rabanadas de “fatias de mulher parida”.
Depois desta noite movimentada, vinha o sono dos justos e só quando eu acordava no dia seguinte, eu encontrava o esperado presente, ao pé da minha cama, ao lado dos meus sapatos. Os presentes de Natal eram simples, porém muito valorizados. Alias, presentear é uma das mais antigas e emblemáticas tradições e provavelmente se originou a partir dos Reis Magos que presentearam Jesus ao nascer. O costume remete também à figura de São Nicolau, um bispo do século III, responsável por trazer os presentes das crianças no Natal e que deu origem a lenda do Papai Noel.
As lembranças são doces, o meu coração se enche de alegria e gratidão e é sobre este último sentimento que quero tecer reflexões.
A palavra gratidão tem a sua origem no latim gratia que significa graças ou gratus que se traduz como agradável. É, portanto, o entendimento de ser grato a algo que a vida nos dá e estes sentimentos de gratidão podem ser benéficos à nossa própria subjetividade.
Gratidão não é apenas retribuir aquilo que se recebe em atitudes, gestos ou situações prazerosas que alguém nos proporcionou em algum momento da nossa vida. Ser grato vai muito mais além: é um estado de espírito e deve acontecer diuturnamente no que tange a tudo que está presente no nosso cotidiano.
Em mim, há um registro claro desta oceânica emoção de ser grata pelas coisas boas que tive e tenho o privilégio de usufruir, e de agradecer ao bom Deus a felicidade de viver tantos lindos natais. Neste contexto religioso, pode-se dizer que a gratidão a Deus é o maior exercício de fé que se pode proferir.
Ser grato pelo que temos e aceitar os nossos limites, sem sofrimento é uma arte difícil. Talvez um dos segredos da felicidade seja este: ser grato, mesmo nas situações adversas.
Nos sentimos injustiçados o tempo inteiro, todos os dias, nas mais diversas situações, quando não recebemos a promoção da chefia no nosso trabalho, supostamente tão merecida, por um justo reconhecimento do esforço e dedicação oferecidos; quando um colega que você quer bem e sempre manifestou este carinho e afeto, de repente se mostra competitivo e incomodado com suas conquistas, em atitudes ferinas e desleais, de puro prazer por lhe ver em situação difícil ou de constrangimento, em uma visível forma de agressão, ainda que inconsciente; quando vemos nossos filhos serem preteridos por professores, tutores ou por mais velhos, em atenção a outras crianças; quando orientamos um aluno com desvelo e ele vira o rosto quando se encontra conosco na rua, nos ignorando; quando nos sentimos traídos e nos é solicitado compreensão e calma, e querem nos convencer da nossa loucura, do nosso egoísmo e mesquinhez; quando vemos pessoas não tão merecedoras, sendo protegidas desmesuradamente, com mais sorte ou levando vantagens, enquanto as nossas necessidades são subestimadas e desqualificadas; quando querem que renunciemos algo que supomos nosso direito e que é dirigido para outrem, nos cobrando superioridade e altruísmo.
Temos a triste capacidade de nos frustrar com frequência, magoar e sermos magoados, até mesmo pelas pessoas que a gente mais ama e que também dizem nos amar incondicionalmente. Somos todos desencadeadores, respectivamente, de sentimentos negativos. Ninguém quer ouvir o argumento do outro. Falta colocar-se no lugar do outro. Tomamos decisões unilaterais querendo resolver os nossos problemas sem imaginar que isso traga repercussões em cascata, incluindo a mágoa por parte de quem se acha injustiçado.
Não me perguntem como se consegue superar isso com fidalguia, elegância, generosidade altivez. Não saberia responder. Mas, sei que a gratidão transforma aquilo que temos em o bastante. E eu tenho tentado ser grata, ainda que, confesso, inundada inicialmente por um grande sentimento, demasiadamente humano, de compreensível tristeza ou explosiva raiva, e de estar sendo injustiçada ou castigada por algo errado que devo ter cometido ao longo da vida. Seria um carma? Seria uma resposta do universo? Castigo divino?
Tenho, nestes momentos de frustração, respirado profundamente, e tento reduzir minhas próprias angústias, e tentado exaustivamente ser grata. Ser grata a Deus pelo pequeno núcleo familiar onde tive a benção de nascer e no qual temos a missão de nos cuidar e nos proteger mutuamente, e nunca em uma via única; pela diversidade de amigos que tenho, pelo respeito pelos que quase invariavelmente pensam diferente de mim (graças a Deus) e também, alguns, que eventualmente até me magoam; ser grata pela possibilidade de ter um emprego; pela alegria de fazer o que gosto no consultório que é ajudar pessoas (ainda que com minhas limitações físicas e psíquicas que às vezes me traem e eu falhe muito); pela docência e por poder contribuir com alegria e desvelo com aqueles que se interessam genuinamente em transformar-se em médicos éticos e humanos; pela minha mesa farta; pelo bom vinho degustado entre amigos; pelo privilegio de viajar.
Ser grato pelas coisas boas que acontecem na sua vida não significa que a vida tornar-se-á perfeita e sem obstáculos, mas possibilita uma atitude crítica e reflexiva, aguçando a nossa percepção de quão maravilhosa e abençoada é a nossa vida. E a partir do momento que começamos a ser gratos pelo que temos e aceitar melhor o que não temos, passamos a ser mais felizes e de bem com a vida. Com o exercício da gratidão reduzimos o desejo de ter controle sobre as coisas e diminuímos as expectativas sobre o que podemos esperar das pessoas que estão ao nosso redor: nada e nem ninguém são perfeitos. Aí sim, entramos efetivamente no espirito natalino.
A gratidão é a virtude das almas nobres, já diziam os filósofos. E como falta nobreza na nossa simples humanidade, ser grato é um desafio perene, que requer muito exercício de tolerância e aceitação.
Obrigada, meu Santo Pai Todo Poderoso! Obrigada pela vida; obrigada pelas intempéries e desafios! Obrigada por este Natal e pelos próximos, que se Deus quiser, hão de vir!
2 comentários em “Lembranças do Natal e a virtude da gratidão”
Belíssima mensagem de natal ,0 Peru de dona toinha recheado com a farofa dos miúdos
Que belo texto, querida Deborah, também para mim – homem de pouca fé que sou – o Natal, ironicamente, apazigua minha mente quando percebo – ou quero perceber – que nesta época os corações parecem encher-se somente de sentimentos bons que, esperamos, contaminem, contaminem.