A endemia da nossa desigualdade cotidiana

Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria.
Mário Quintana

A gente não pode ver estas coisas sem arder os olhos, sem horrorizar-se, sem sentir náuseas, pois isso é sinal de que perdemos algo mais do que a consciência: perdemos a alma!
Mell Glitter

Enquanto os homens exercem seus podres poderes/ Morrer e matar de fome, de raiva e de sede/ São tantas vezes gestos naturais.
Caetano Veloso

No meu trajeto de casa até o meu consultório passo por um único semáforo que fica diante do maior shopping center da cidade e entre dois importantes supermercados: um é grande no que tange à qualidade superior de todos os seus produtos nacionais e importados, e o outro é gigante em metros quadrados abarrotados de produtos, dos mais populares, àqueles que ostentam grifes reconhecidas internacionalmente.

Exatamente aí, temos geralmente, no mínimo, duas famílias completas: casal jovem, crianças de colo e outras maiores entre quatro e 12 anos, na maioria das vezes.

As duas ou três famílias fazem revezamento dos seus membros para abordar os carros e seus usuários. Para as crianças de colo, não há esta possibilidade: sempre estarão nos braços de um dos genitores entre os carros que aguardam o sinal verde e às vezes acordadas, às vezes adormecidas naquele sol escaldante.

Mas invariavelmente quietas – isso deve ter um significado – enquanto o outro genitor dialoga estratégias de sobrevivência com os colegas de infortúnio naquela esquina da vida. Esquina que gera o paradoxo entre a pujança e a miséria absoluta.

As demais crianças veem naquilo um grande evento na abordagem dos motoristas, correndo perigosamente entre os carros, pois às vezes alguns ainda estão em movimento. Parece uma festa, como se fosse uma ida com a família para um parque, em um domingo, enquanto um ou outro responsável, sempre sentado na sombra, os controla com um olhar de estímulo à distância.

Tenho amigos que dizem que não dão esmolas, mas usam isso como uma filosofia e acreditam que com sua negativa estarão ajudando àquelas pessoas ainda jovens a sair da mendicância e a buscar trabalhos. Outros, como eu, não tem uma posição firme ou talvez ideológica.

Meus sentimentos são absolutamente ambivalentes. Às vezes sinto raiva por aqueles pais estarem usando as crianças. Outras vezes, tenho dó, talvez não tenham alternativas. Outras, ainda, sinto uma preocupação genuína, quando acompanho os movimentos daquela família e de longe vejo alguns motoristas perversos, lançarem olhares lânguidos para aquelas crianças, e só Deus sabe o que eventualmente dizem para elas.

As percebo como presas fáceis para pedófilos que as aliciam, aproveitando-se da ingenuidade e da fome. E por fim, sinto ódio mortal por pais que não protegem os seus filhos e veem silenciosamente aquele jogo, à distância, e em nome da própria sobrevivência aceitam o assédio, roubando dos filhos a pureza e a dignidade. Ah mundinho cruel!

Será mesmo, que aquele casal jovem não conseguiria um emprego, caso envidassem algum esforço? Mas, caro leitor, pense comigo: você daria um emprego àquela mãe e a colocaria dentro da sua casa? Não estamos partindo de premissas preconceituosas?

Não seria uma posição cômoda pedir esmolas com os filhos que podem, com suas presenças, quebrar a frieza de alguns corações? Talvez! A mendicância é uma escolha? Creio que não!

De moeda em moeda, de segunda a sábado, talvez consigam um valor superior ao salário mínimo de vergonha neste país. Calma, gente. Não sou alienada, pois eu sei que o salário mínimo é alto para o empregador e excessivamente baixo para o empregado.

Este é mais um paradoxo para Fernando Haddad, Simone Tebet e Roberto Campos Neto. Não queria estar na pele de nenhum dos três, principalmente do último, que tem sido chacoalhado todos os dias. Manter as finanças do país em ordem é muito difícil.

Excluí o domingo da citação acima, porque mesmo os menos favorecidos descansam no sétimo dia, como preconizado desde a criação do mundo, e quando faço o mesmo trajeto eles não estão ali. Ok, leitor, podem ter migrado para lugares mais movimentados. A praia, quem sabe!

Como raramente vou para aquelas bandas, não saberia lhe dizer se estão em casa ou a família vai ver o mar para pedir ou se divertir. Graças a Deus, a praia ainda é um programa bem democrático. Esta minha análise da miséria, há de convir, é bem rasteira e simplista.

Algumas vezes penso: “onde está o Conselho Tutelar? Será que ninguém enxerga isso?” Mas como sou testemunha, ainda que distante, do destino de algumas crianças abrigadas após os pais perderem a tutela geralmente após abusos sexuais, percebo que as coisas pioram muito mais com o afastamento daquelas infelizes crianças dos seus pais e não raro os adoecem psiquicamente para sempre.

Assim, ao tempo que lembro que existe um Conselho Tutelar, também penso que melhor destino ainda é estar com os pais, pois o Estado também não as protege. Para o Estado são reconhecidas pelo número dos seus respectivos processos. Para os pais, ao menos elas têm um nome e uma biografia, sendo construída e perdida simultaneamente.

Não sei se o leitor consegue me compreender. Eu fico atordoada com a avalanche de pensamentos contraditórios ao assistir aquelas cenas. Minha indignação se avoluma quando vejo, por exemplo, nos noticiários, dados absurdos como o da compra de um sofá de R$ 65 mil e uma cama de R$ 42 mil para o novo presidente da República.

Nada contra móveis confortáveis. Acho que um presidente até merece. Mais indignada ainda, fico diante da decisão do ex-presidente de permanecer nos Estados Unidos após a sua derrota nas urnas no último pleito até o dia 15 de março, que custou R$ 529,2 mil em diárias aos cofres públicos. Gente, por favor, me entendam: nada contra o período sabático de quem quer que seja, desde que com recursos próprios.

Na verdade, estas cifras me assombram frente às desigualdades sociais e econômicas do nosso país, e é disso que na realidade quero tratar aqui. Ou seja, a provocação é que com o que se gasta em supérfluos, com o rico dinheirinho que suo para ganhar e como contribuinte efetivamente pago de impostos, quanto poder-se-ia ajudar pessoas, das esquinas da vida, com seus respectivos filhos para que pudessem ter uma vida mais digna com escolaridade e saúde? Quantas crianças, com esta verba, tiraríamos das ruas e as afastaríamos de riscos de toda a sorte?

O SUS e a estratégia Saúde da Família sempre foram subfinanciados, mas ainda assim, durante algum tempo foram essenciais e positivos para reduzir desigualdades. Atualmente a situação piorou muito, por falta de recursos.

Temos dinheiro para sofá, mas falta dinheiro para alimentos nas creches, por exemplo. Sei que é uma comparação pueril e ignorante, não me julgue, prezado leitor, mas é o que meu imaginário produziu e que me suscita indignação.

Importante perceber que as desigualdades são multidimensionais e multissetoriais e estão associadas com políticas de saúde, educação, transporte, água e saneamento.

Claro que as desigualdades étnicas, sociais e de gênero, não são privilégio do Brasil, e mesmo nações ditas ricas e evoluídas padecem com seus bolsões de miséria, e conflitos éticos e sociais.

A esta altura sei que o leitor espera de mim sugestões inteligentes para a solução do encontro que tenho marcado quase diariamente com aquelas famílias e que já consigo, até reconhecer alguns rostinhos inocentes que mereciam melhores destinos.

Fico com a sensação de que, se cada um de nós preservar a capacidade de indignação, e formos capazes de cobrar e pressionar neste sentido, os nossos parlamentares provavelmente envergonhar-se-ão da falta de atitudes diante destes cidadãos excluídos e que vivem à margem da sociedade, porém desfilando diante dos nossos olhos e diante dos shoppings e supermercados onde frequentamos, como se apontassem com suas presenças para a negligência de toda a sociedade, onde você, caro leitor, e eu, nos incluímos.

Eu e você deveríamos nos sentir muito constrangidos por assistirmos inertes a espetáculos tão deprimentes nestas esquinas e somos nós que temos que nos posicionar. Não basta indignar-se! Importante que se frise que o mundo exige atitudes, e não meras opiniões.

Só me ocorrem três  alternativas: dar o óbulo – para quem não conhece a expressão, explico: oferecer um donativo de pouco valor aos pobres -; atentar-se acerca dos nossos gestores e parlamentares nos quais votamos, que são absolutamente apenas instagramáveis com seus egos inflados – leia-se, midiáticos -, e cobrar deles ações reais, para tirar aqueles miseráveis das ruas, alimentá-los, oferecer trabalho, escola e teto. Ou uma terceira alternativa, a mais fácil de todas: ignorar a cena, baixar a cabeça, fazer de conta que não percebemos as mãos estendidas em súplica, em nossa direção.

Quando chegamos em casa dessensibilizados, porque já naturalizamos esta cena, nos tornamos na verdade seres desumanizados, insensíveis e desmemoriados para nos encontrar com os nossos filhos e netos saudáveis e de barrigas cheia.

E você, o que tem sentido ou tem feito como cidadão? A cruel verdade é que a minha e a sua opinião não matam a fome de ninguém. Você tem opiniões ou toma atitudes?

Fecho o meu texto usando as reflexões da jovem poeta Mell Glitter que nos diz:

A gente não pode se acostumar à violência, à fome, à miséria, à ganância, à guerra, ao preconceito, ao racismo, à discriminação, à intolerância, à injustiça, ao desamor, à impunidade, à corrupção…

A gente não pode se acostumar com coisas que não deveriam ser normais…

A gente não pode ver estas coisas sem arder os olhos, sem horrorizar-se, sem sentir náuseas, pois isso é sinal de que perdemos algo mais do que a consciência: perdemos a alma!

Vida que segue!

originalmente do JLPolitica.com.Br

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