Hattiesburg: uma experiência da juventude

Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais 
e até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer

Queria ter aceitado as pessoas como elas são.

Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração

Devia ter complicado menos,

Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr.

Sérgio Britto – Titãs

Por generosidade dos meus pais, fui estudar inglês nos Estados Unidos em uma minúscula cidade de 10 mil habitantes: Hattiesburg, na The University of Southern Mississipi – USM.

Não fui sozinha. Tinha uma legião de jovens da mesma idade, alguns eram colegas da Universidade Federal de Sergipe. Eu estava no início do curso de Medicina.

Foi uma experiência gigante para uma jovem superprotegida. Lá os amigos se separaram e todos ficaram alojados com roommates americanos, para favorecer o aprendizado da língua. Tudo era novidade e eu morria de medo de absolutamente tudo.

Era um mundo diferente do atual. A telefonia era cara e meus pais só ligavam uma vez por semana, aos domingos, e com hora marcada para eu estar no quarto e receber a ligação.

Em compensação eles mandavam cartas pelo correio, a cada dois ou três dias, e eu retribuía. As cartas levavam ao menos dez dias para serem recebidas. Ainda tenho uma destas cartas. Não lembro de cartas de mamãe e nem da minha irmã. Mas lembro das cartas de papai, que eram verdadeiras crônicas. Eram curtas e deliciosas. Adorava recebê-las!

Eu tinha a minha caixa postal no correio da universidade. E só lá que eu recebia as correspondências. Às vezes eu recebia revistas. Lembro das revistas “Fatos e Fotos” e da revista “Manchete” sobre o carnaval.

As cenas de mulheres seminuas nos bailes do Copacabana Palace no Rio de Janeiro e nos desfiles das escolas de samba, chocaram os colegas. Eles tiveram a ousadia de perguntar se eu também me expunha daquele jeito no carnaval. Imagine, caro leitor… fiquei na ocasião indignada e arrependida de ter mostrado as publicações. Bobagem!

Eu também, eventualmente, recebia com júbilo, dos meus pais, via correio, alguma cédula extra de dólar, entre duas folhas de papel carbono dentro de uma carta, ou no meio de uma revista. Nunca usamos serviços bancários. Aquele presente extra era motivo para ir ao minishopping próximo a USM. Meu dinheirinho era contado e não cabiam extravagâncias.

Recordo ainda de um príncipe indiano – ou seria outro título de nobreza?! Não lembro. Ele era supostamente muito rico e éramos colegas de sala. Não lembro o nome dele e perdi totalmente o contato.

Ele nos convidou para um jantar na casa dele. Ele tinha carro e estava em uma casa alugada nos arredores e vivia cercado por dois seguranças. Os seguranças foram me buscar com mais três amigas e ao chegarmos a regra era que tirássemos os sapatos.

O jantar também nos surpreendeu, pois foi servido no chão. Era uma espécie de galinhada com arroz ao curry – murg biryani – e comemos com as mãos. Lembro-me de ter apreciado a iguaria.

Contei para minha mãe e ela tentou fazer e repetir o prato indiano. E olhe que Dona Elena consegue, porquanto o seu amor de mãe, fazer tudo o que eu gosto. Mas acho que tinha a ver com a mágica de um momento único: sabor de um instante especial.

Depois virou uma festa normal de jovens, com música, bebida e risadas. Não ousei beber nenhuma gota de álcool. Era para mim uma questão de segurança. Hoje penso, porém, que havia um pouco de excesso, se pensarmos que eu era adulta e devia ter cerca de 20 anos e já estudava Medicina. Mas afinal: assim foi!

Decidi agora, 45 anos depois, voltar àquela universidade. Hoje, Hattiesburg tem quase 50 mil habitantes e ainda é basicamente uma cidade universitária.

Foi meio nostálgico. Quando pisei os pés na entrada da USM, escutei uma voz, vinda do fundo do meu baú. Era a lembrança de um oriental, colega de sala, que era meio bobo, infantil, ou talvez até portador de algum transtorno, e que repetia o tempo inteiro: “outside is cold” – lá fora está frio.

Lembrei dos principais prédios da USM, mas não localizei o meu especificamente. A fachada da entrada principal é a mesma. Mas o prédio da Reitoria ganhou um jardim novo e uma escultura gigante de uma águia, símbolo daquela escola. Ficou bonito.

Estive três vezes no prédio da Reitoria, enquanto estudante: na chegada, quando fomos recebidos em cerimônia de boas-vindas e recebemos uma caneta dourada com o nome da universidade e que… advinhe, querido leitor… tchan tchan tchan… guardo no meu consultório até hoje; e por duas vezes mais, fui até lá para receber certificados de Honra ao Mérito por ter sido destaque com as minhas notas de aproveitamento. Constam no meu Currículo Lattes, com orgulho.

O campus cresceu muito e não reconheci os limites. Mas lembrei do percurso que fazíamos até um minúsculo shopping que devia ter no máximo seis lojinhas e um supermercado, mas que nos finais de semana era visita imperativa para pequenas compras de sobrevivência ou para tomar um sorvete.

Lá tinha uma loja tradicional americana, que existe até hoje e que eu amava, a Papelaria Hallmark, também conhecida como a marca da coroa que está presente na sua logo. A livraria é uma empresa centenária, criada em 1910 e está instalada no mundo inteiro, com cartões em 30 idiomas.

Sou capaz de apostar, caro leitor, que dificilmente quem, incluindo você, já mandou um cartão comemorativo, de agradecimento ou de boas-vindas para alguém, em qualquer parte do mundo, não tivesse em mãos um cartão Hallmark.

Adquiri um marcador de livro fofo, com um ratinho lendo um livro, que tenho até hoje, perdido dentro de algum livro de Freud. Acho que sou acumuladora de memórias e souvenirs.

Na época, o caminho até aquelas lojinhas era um descampado em uma estradinha cheia de pinheiros altos e com o caminho “coalhado” (ou cheio, para quem não conhece a expressão) de pinhas. Escolhi duas lindas pinhas e levei para casa, pensando em pintá-las de purpurina dourada para colocá-las na árvore de Natal. Destas, confesso que não sei o destino.

Passei o meu inverno mais frio, até então, por lá. Depois, outros invernos superaram. E a temperatura mínima naquela ocasião foi de apenas 10 graus. Afinal era Mississipi.

Mas, eu viajei preparada e estava bem agasalhada. Dona Elena, minha linda e maravilhosa mãezinha, mandou fazer casacos de lã de tricot: um marrom e um cinza, com toucas e luvas combinando.

Eu me sentia o máximo usando aquelas peças. Ela também me presenteou com um casaco longo, de pele sintética, cinza claro, que fazia com que eu me sentisse a própria Grace Kelly – a atriz que se tornou a princesa de Mônaco.

Aliás, meu casaco fazia tanto sucesso que um dia entrei no meu quarto e encontrei as amigas da minha roommate desfilando com ele pelo quarto. Ficaram constrangidas e silenciosas e eu fingi não ter percebido. Perdi uma grande chance de me socializar mais com elas. Eu era extremamente tímida e insegura.

Em alguns finais de semana, viajávamos. Alugávamos carro. Como éramos todos menores de 21 anos, as locadoras não autorizavam o aluguel e uma professora nossa, muito jovem, talvez uns três anos mais velha, cujo rosto lembro, mas esqueci o nome, fechava o contrato. Sei que com ela fomos a Jackson, capital do Mississipi.

Não lembro nada da cidade, mas lembro do carro, que naquela época já era automático e uma grande novidade para todos nós, gerando surpresa e insegurança diante do novo.

E olha que eu dirigia desde os meus 13 anos de idade, graças a seu Pimentel, que teve paciência e prazer em me ensinar. Treinávamos arrodeando a praça Assis Chateaubriand, onde morávamos, e cujo movimento era beirando a zero, o que me favoreceu muito.

Todos nós tivemos a oportunidade de experimentar e dirigir um pouco aquele carro americano mágico, mas só um pouco, pois a professora tinha medo de ser multada. Quem mais aproveitou destes momentos foi um amigo querido, Ricardo Gurgel.

Esta jovem professora morava com os pais e também nos convidou para jantar com eles em um final de semana. Para mim, que era muito tímida, foi uma experiência muito especial. Acho que mal abri a boca. Se não me falha a memória, Acacia Brandão, Suzana Passos e Ricardo Gurgel estavam presentes.

Chegamos “on time”, como manda a etiqueta, e o jantar foi servido imediatamente, sem preâmbulos. Após o jantar, o casal anfitrião, imediatamente nos conduziu à porta para despedidas absolutamente formais. Sem delongas.

Saímos de lá, comentando que jantar simpático e cordial, considerando o jeito americano frio de ser e receber. Hoje já não creio que sejam todos assim.

Ah, se fosse nos dias atuais, aquela experiência teria sido completamente diferente. Eu teria socializado mais, falado mais, complicado menos e aproveitado mil vezes mais, vendo o sol nascer e se por. Passou, mas ficou!

originalmente do JLPolitica.com.Br

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