O fazer psicanalítico e o preparo profissional

O fazer psicanalítico e o preparo profissional

“O novo não é o ver o nunca dantes visto no estranho,
mas ver, no sempre visto, o que nunca foi visto antes”

Jorge Forbes

Tenho recebido ultimamente uma porção de propagandas vindas do Brasil inteiro, com ofertas de cursos online de psicanálise. Lembrei muito do Instituto Monitor, que foi fundado em 1939 e do famoso Instituto Universal Brasileiro que surgiu em 1946. Quem lembra destes institutos?

O ensino por correspondência, com material impresso e enviado pelo Correio fez sucesso absoluto, principalmente nos anos 1970. Eram os embriões, bem-sucedidos, do Ensino a Distância atual – EAD . Naquela época a metodologia dos cursos técnicos era via correspondência. Imagine você, caro leitor…

Fico tentando entender como se forma um psicanalista por correspondência/online. Como eu recebo muitas pessoas querendo saber como tornar-se um psicanalista, sempre alerto que para que haja um psicanalista faz-se necessário ser sujeito. Daí a inspiração de fazer ponderações neste espaço nobre.

Na instituição à qual pertenço e sou membro fundadora desde 1988, o Círculo Psicanalítico de Sergipe, só aceitamos médicos e psicólogos para a formação acadêmica. Sabemos que Freud era defensor da análise leiga, mas depois de muitas discussões e argumentos, foi isso o decidido, inclusive por questões legais. Afinal, não vivemos em Viena e somos fiscalizados pelos respectivos Conselhos das categorias acima.

Para que haja uma adequada formação, deve existir o famoso tripé: análise individual, no mínimo durante toda a formação, pois você não pode se arvorar a ajudar alguém a se conhecer se você não se conhece, diz coisas que não quer dizer e faz coisas que não quer fazer e, o pior, sente coisas que não quer sentir e faz sempre as piores escolhas.

E mais: estudo teórico – cinco anos – e supervisão clínica dos casos atendidos por três anos, divididos entre dois supervisores. Essas fases as vezes se superpõem. E lá se vão de cinco a seis anos.

As promessas de formação em regime EAD, em preços convidativos, são mais compactas. Tipo: oito meses de estudos teóricos, dois meses de análise “para se experimentar no divã” e mais dois meses de supervisão de casos clínicos. Em um ano, você já pode clinicar. Promessa de formação em uma nova profissão cumprida. A qualidade deste psicanalista é que dói muito.

Há um certo glamour em torno do “ser psicanalista”. E uma oferta de um curso tipo Instituto Universal é muito tentadora. Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Se a gente pode encurtar, por que não? Diriam os famosos espertos.

Talvez este candidato em ensino EAD realmente acredite que seja moleza uma formação, conforme lhe foi prometida, mas seja apenas mais uma vítima. Ou seria esse candidato um ingênuo, ludibriado por falsas promessas? Ou ainda um psicopata? Quem vai saber? A quem ele vai responder?

Há de convir que é uma bela proposta para preencher o tempo ocioso de um aposentado, por exemplo, que vê na psicanálise a chance de uma segunda carreira; ou de uma dona de casa que vive a síndrome do ninho vazio e quer voltar aos bancos escolares, nem que seja EAD.

Enfim… como se trata de terra sem dono, não há quem fiscalize os novos psicanalistas, cujo trabalho original era de engenheiro, advogado, jornalista, pastor, padre ou qualquer outra prática laboral.

Quem fiscalizará a atuação de um sujeito com transtorno borderline, e que vai atuar/brincar com o inconsciente dos seus analisandos de forma inadvertida e imprudente, pois sequer se conhece e nem aos seus impulsos e desejos, que nunca foram trabalhados e certamente poderão provocar mais danos ao já sofrido paciente?

Não há dúvidas de que os limites do processo analítico são fronteiriços aos da supervisão, principalmente em referência ao desejo do analista – desejo de saber. Alguns dos efeitos da supervisão são, por vezes, próximos aos de uma análise, apesar de outros serem específicos da supervisão e só serem obtidos através da sua prática.

Quando se procura uma supervisão, o sujeito vem em busca de um saber que supõe que o supervisor o tenha e lhe transmita. A supervisão, neste contexto, é um ato analítico, pois envolve desejos inconscientes, transferência manifestada na busca de resposta no supervisor, de algo que não se sabe, e faz ato, na medida em que o supervisor não responde à demanda do candidato a psicanalista, com um saber pronto e permite que ele continue sua busca em uma franca transferência de trabalho.

Quem serão os analistas e supervisores destes candidatos? Membros da instituição que oferece o curso, provavelmente. Os analistas e supervisores seriam ingênuos, despreparados e loucos? Ou tudo isso é um belo filão/mercado lucrativo de EAD?

Lembro, em um tempo não muito distante, que uma grande amiga, profissional ética e zelosa, havia sido convidada para ser coordenadora de um curso de Enfermagem EAD. Claro que ela declinou imediatamente. Já pensaram a qualidade de enfermeiros que este grupo está lançando no mercado, para trabalhar cuidando de gente? Deus nos livre!

A supervisão é muito importante, pois não raro ela encobre uma outra demanda, a terapêutica, sem que, no entanto, o candidato a psicanalista perceba. Enquanto isso, na sua análise, falar de seus pacientes nem sempre constituir-se-á uma resistência, ainda que o oposto seja verdadeiro, ou seja, as resistências podem ser mantidas falando-se de qualquer coisa, inclusive pacientes e é preciso falar disso também, sob pena destas resistências não terem a chance de ser percebidas e elaboradas. Como tudo isso acontece em um curso EAD?

Acho que estes falsos profetas interpretaram de forma equivocada ou conveniente, quando o psicanalista Conrad Stein diz que “psicanalista é não ser curado e nem formado”, mas capaz de prosseguir sua análise para além do tempo das sessões que se teve enquanto analisando. O problema é que estes alunos candidatos a psicanalistas por EAD não são analisados e nem supervisionados. Nem a teoria estudada por eles é suficiente, por óbvio.

O candidato a psicanalista bem analisado, anos a fio, graças aos seus analisandos, vai perceber o quanto permanece exposto ao inconsciente, na medida em que se dá conta que funciona com referências que ele desconhece e que o governam, sem que ele saiba.

Neste momento o trabalho da análise e da supervisão se superpõem. Como não se preocupar com estes novos pseudoanalistas? O estrago é grande. Estamos falando de pacientes com sofrimento que poderão e irão cair nas mãos de pessoas despreparadas.

O paciente não sabe distinguir o joio do trigo, infelizmente. Provavelmente pagará um preço bem elevado e à custa de dores na sua própria alma. Não há nada mais adequado, senão o fato de paralelo à sua análise pessoal, que um candidato à psicanalista escolha um outro espaço para falar de sua transferência e das vicissitudes da sua prática clínica: a supervisão.

O ideal é que a análise pessoal se prolongue pelo tempo da supervisão, favorecendo uma análise da contratransferência que tem a capacidade de obstruir a evolução do trabalho psicanalítico do candidato a psicanalista com seu analisando. A análise da contratransferência e dos pontos cegos do analista não são objetos de trabalho na supervisão, ainda que possam ter sido detectados aí.

Escondendo-se na correlação prático-teórica, revelando muito pouco da sua prática clínica, esta supervisão na realidade seria, sem dúvida, uma forma possível de retomar à sua análise sem, no entanto, submeter-se a ela.

É definitiva a afirmação de que a análise de um psicanalista é de caráter interminável, na medida que seu processo de análise pessoal tem continuidade na análise que ele empreende com os seus analisandos e a necessidade constante de estudos teóricos, que demanda décadas sem fim, de reanálise e de muita supervisão. Tenho dito!

originalmente do JLPolitica.com.Br

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