Trabalho médico, auto cuidado e competição dentro da equipe de saúde.

A categoria profissional dos médicos tem peculiaridades específicas, haja vista a sua grande responsabilidade frente à vida. A sua qualificação e competência profissional, a sua conduta e intervenções precisas, são capazes de aliviar o sofrimento e em alguns casos, evitar a morte daqueles que lhe pedem ajuda, investindo o médico de um poder quase divino, poder de vida e morte, que exige deste profissional um grande equilíbrio emocional para lidar com estas demandas e sofrer menos diante da sua comprovada impotência a cada morte que assiste. Como elemento agravante do desgaste físico e emocional dos profissionais de saúde, em especial os médicos, diante de um cotidiano avassalador, esta categoria profissional é a que mais resiste às medidas profiláticas para cuidar de sua própria saúde. Não se sabe o que faz com que os médicos, subestimem esses cuidados que eles preconizam e recomendam aos seus pacientes, no seu próprio exercício profissional, relacionados à sua própria saúde.

Sabe-se que o médico, entre todos os profissionais de saúde, é aquele que menos participa dos poucos programas de controle de saúde ocupacional que existem no nosso país. Não se pode esquecer o modo como se produz o trabalho médico e que ele está ligado diretamente às necessidades de subsistência do profissional enquanto indivíduo e dentro de uma estrutura de produção. A saúde passou a ser um bem de consumo, uma mercadoria reificada, e a doença a ser considerada como possibilidade de lucro.

O profissional liberal está sendo, aos poucos, engolido pela Medicina de grupo, quer como servidor público, quer ligado à iniciativa privada, a exemplo dos planos e seguradoras de saúde. A privatização e ao grande exército de novos profissionais que chegam todos os anos no mercado de trabalho. A cada tempo – quer histórico ou cronológico, quer como tempo de trabalho dos profissionais de saúde, há uma inserção de um conhecimento dentro de um contexto social, cultural, econômico e político das relações que se circunscrevem.

Para compreender o conhecimento médico, é necessário também percebê-lo inserido em um processo de construção do pensamento, no desenvolvimento da humanidade e nas suas relações e concepções de mundo decorrentes de produções científicas e epis “opções teóricas e conceituais dentro de contextos epistemológicos e de produção da ciência, considerando que estes conhecimentos estão em constante evolução.

Há em vigência um novo modelo de educação médica com uma formação mais contextualizada levando em conta as dimensões sociais, econômicas e culturais da vida da população. No novo modelo de educação, a saúde deve ter mais importância que a doença e deve haver também, uma reflexão sobre as questões econômicas das práticas de saúde, as humanísticas e ainda, os aspectos éticos aí implicados.

A saúde, a doença e as várias formas de se curar são tão antigas quanto a humanidade. Entre o mágico e o divino, mesmo os povos ditos primitivos tinham os seus responsáveis por intermediações, a exemplo dos pagés, entre nossos índios, os xamãs entre os ameríndios, curandeiros e feiticeiros entre os povos africanos, a Medicina ayuvédica dos hindus, para citar só esses.

Desde os primórdios, portanto, havia sempre um grupo de homens que detinham o conhecimento ou a explicação sobre a doença. Havia também códigos e formas de quem cuidava das doenças e dos doentes. E, desde sempre, havia uma ligação entre a doença e o divino, com necessidade de compreensão acerca da sacralização dessa mediação. Aos poucos a Medicina passa a ser ciência e se recusa a ser magia, sacerdócio ou filosofia. A partir do século XVIII a doença não é mais procurada na alma do indivíduo ou nas forças sobrenaturais e passa a ser buscada no corpo, iniciando-se a era nosológica.

Entretanto, paradoxalmente, nos dias atuais, século XXI, diante de todo o tecnicismo e evolução científica, mas também, diante do mal-estar contemporâneo que gera novas formas de neuroses, ou ainda diante da miséria financeira e cultural do nosso povo, nunca houve tanta busca pelas terapias alternativas e entre elas a cura pela fé com uso de rituais os mais diversos, calcados nas mais variadas expressões religiosas. Os antropólogos têm apontado os aspectos positivos do tratamento religioso, graças à forma como age sobre o indivíduo, considerando-o como um todo, relançando-o em um novo contexto de relacionamentos, refazendo laços sociais. Lévi-Strauss afirma que mais do que atribuir uma causa objetiva a estados desordenados e confusos, a interpretação religiosa organiza tais estados em um todo de forma coerente.

Aqueles profissionais de saúde que forem capazes de aceitar a doença como uma realidade cultural e biológica dos seus pacientes, terão mais chances de estabelecer uma aliança terapêutica em direção da cura, ao analisar a relação entre os símbolos e práticas rituais e o curso dos sintomas. Aqueles profissionais de saúde que se prepararem melhor, e tiverem mais sensibilidade para a escuta, sofrerão menos e oferecerão melhores serviços.

O objeto de trabalho dos profissionais de saúde é o corpo humano doente. Este corpo doente do paciente não é o mesmo corpo humano visto pelos profissionais de saúde, em especial pelo médico, mas um objeto modificado e portador de uma necessidade. O produto é a saúde, resultado de ações em que o portador teve suas necessidades atendidas. Ao coexistir, um corpo e uma necessidade, simultaneamente, em um mesmo espaço, este se torna, enquanto lugar de relação, ambíguo.

O saber médico segundo era até metade do século XX, uma mera decodificação de sinais e sintomas usando os recursos da evolução científica. Hoje este saber se amplia e tem o poder de legislar e julgar, tanto no plano do conhecimento, quanto no plano da prática, sobre saúde e doença, a partir de concepções científicas, dentro dos limites físicos, químicos e biológicos do corpo humano.

A epidemiologia, por outro lado, constitui-se um saber estruturado sobre a dimensão coletiva do fenômeno da saúde. A doença enquanto conduta social, status social e o papel do doente na sociedade e suas relações com a instituição médica, precisam de especial atenção. As universidades têm grande responsabilidade e são o melhor fórum para o debate, consciente da necessidade de se refletir e discutir sobre o nosso país, a nossa realidade, os nossos problemas e as possíveis soluções para eles.

A Organização Mundial de Saúde e a Associação Brasileira de Ensino Médico, conjuntamente a outras entidades de ensino, promovem diversos eventos para analisar as reformas de saúde deste país e deparam-se com uma série de enfrentamentos ideológicos e políticos que vão desde a terminologia/jargão médico até discussões de que tipo de profissionais de saúde a sociedade precisa.

Uma outra questão que tem mobilizado todos os profissionais de saúde e principalmente o médico é que, até os anos 50 do século passado, havia no Brasil apenas cinco tipos de agentes profissionais no campo da saúde: médicos, veterinários, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros. Todos tinham o seu espaço institucional e campo de trabalho definidos em leis e na medida que foram surgindo novas profissões, elas foram também legalmente se instituindo, exceto a Medicina e daí toda a grande polêmica gerada acerca dos papeis inerentes a cada profissional de saúde.

O Conselho Federal de Medicina acredita ser fundamental dizer para a sociedade quais são os procedimentos médicos válidos e reconhecidos, definindo o ato médico. Os médicos acham que não podem permitir que atos, supostos de sua competência, sejam executados por outros. Eles esquecem as demandas de quem sofre e defendem apenas a oferta de serviços.

A contrapartida é que os médicos conseguiram que todas as demais 14 profissões que se afirmam defensores de uma visão humanista e holística da saúde, se articulassem contra aquilo que eles acreditam ser exclusivos e de sua competência em uma visão tecnicista e mecânica.

E mais, os demais profissionais de saúde que poderiam ser vistos como parceiros são tidos como charlatães e são eles que apontam que os Conselhos Regionais de Medicina são órgãos a serviço do corporativismo, tentando sempre encobrir a incompetência e arrogância com a pretensão de tornar o médico, uma figura de grande poder e fazê-lo controlar o exercício de todos os profissionais de saúde. Isso parece, em parte, ser procedente. Carece muitas reflexões. Mas, médicos não gostam de discutir determinados temas.

Não há que se questionar que se vive um momento em que a saúde é prática interdisciplinar e contestações em contrário não reflete a realidade contemporânea das profissões e das práticas públicas de saúde. Quem ousaria dizer isso aos médicos?

Os fatos acima, relacionados ao que se define o ato médico e que envolvem a promoção da saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças, portanto, depõem contra a união dos membros das equipes de saúde que competem entre si, criando clima de desconfiança e desconforto entre as categorias. O que os médicos desconhecem é que múltiplas parcerias e confiança entre aliados são mecanismos de prevenção do seu próprio mal estar psíquico no trabalho; possibilidades reais de garantir saúde mental no que tange os aspectos do exercício profissional; e oxalá, mais dignidade para os pacientes atendidos de uma forma abrangente, adequada, humana e justa por todos os que acreditam na dignidade do ser humano que sofre e que é estruturalmente desamparado nas suas demandas aos profissionais de saúde, em especial, ao médico, frente as mazelas do corpo e da alma.

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