Vida, Morte e o Morrer

Ela era cheia de vida, bonita, simpática, muitos amigos, mil planos, inquieta, detentora de muitos projetos.

Em um dia de chuva, trânsito insuportável, como só em uma pequena e notável capital há de ter, desloca-se do consultório de um colega jovem, ex-aluno, em direção a lugar nenhum.

Sua cabeça ainda não tinha processado a má noticia que acabara de receber. Era preciso um limpador de para-brisas mais potente, pois aqueles do seu carro novinho em folha, mal davam conta da extemporânea queda d’água que os céus enviaram de repente e que caia lá fora, e da outra, dentro do seu peito, que a fazia transbordar e que corria torrencialmente de seus lindos olhos sob a forma de uma tempestade de lágrimas sem fim. Que dor incomensurável!

Quão irônico é o destino.

Seu ex-pupilo seguiu, conforme aprendeu com a velha professora, todo o protocolo SPIKES de comunicação de más notícias.

Senão vejamos:

S de setting e ele soube preparar o ambiente para recebê-la após a abertura e avaliação de todos aqueles numerosos exames que havia solicitado. Puxou a cadeira para frente de sua mesa, retirando o único obstáculo que havia entre ambos; estavam sozinhos, dando a professora total privacidade e segurou suas mãos. Aquele ritual, que ela fizera, em tempos não muito distante, ele dramatizar inúmeras vezes nas suas aulas de habilidades de comunicação, ambos conheciam. Ele gaguejou nas primeiras palavras, pois a emoção é de ambos, médico e paciente. Ela recomendou inúmeras vezes aos seus alunos para não temerem a própria emoção e sempre repetia: “Médico tem sentimentos também e isso não é sinal de fraqueza, como alguns professores ensinam, mas de humanidade. Que único animal chora, senão o humano? Nunca se afastem do sujeito sensível e zeloso que existe dentro de cada um e trabalhem com uma palavra que parece distante do jargão médico: compaixão”.

– P de perception. Ele perguntou para capturar a percepção dela sobre o que estava acontecendo. “Até onde a senhora sabe sobre a sua doença, professora?” Na verdade, aquela pergunta era uma introdução para que a mestre fizesse o convite para ele, jovem médico, falar.

– I de invitation. “Não me esconda nada. Quero saber tudo”.

Aliás, não precisava pedir, era obrigação hipocrática comunicar a verdade à sua paciente. Era um direito dela saber. Afinal, ela precisava saber como administrar a sua vida doravante ou o que dela restasse. Tinha tantas coisas para organizar, papeis, velhas lembranças e segredos para rasgar, afinal seus filhos não precisavam ler aquelas bobagens e nem terão como e nem porquê guardar. Tinha que antecipar o imposto de renda para não dar trabalho com o espólio, e pensou rapidamente que talvez devesse fazer um testamento, profilaxia de confusão doméstica.

– K de knowledge. Ora de trazer conhecimentos acumulados e informações sobre o que ocorre no seu organismo. Na verdade, enquanto ele dava mil explicações, a cabeça voava. Ela pensava na possibilidade de que aquilo não podia ser verdade.

E se o diagnóstico estivesse errado? E se trocaram os exames laboratoriais e clínicos? Começou o seu processo de negação e de raiva. Afinal ela sempre foi uma boa menina. Por que? Por que justo com ela? Tanta gente má por aí. Será que Deus não via isso? Que pai injusto é este? Mas esta reação foi logo seguida por uma de barganha. E se ela fizesse uma promessa para a N.S.de Fátima? Enquanto pensava sem prestar muita atenção naquelas informações tão inexoravelmente precisas do seu jovem médico, lembrou até do poeta português de quem tanto gostava, Fernando Pessoa, que dizia “navegar é preciso, viver não é preciso”. Caiu como uma luva. A ciência e a tecnologia já não são empíricas, tudo é muito milimetricamente calculado, preciso, mas a vida e a chegada da morte, estas não marcam dia ou horário, não dá para fazer planos sem arriscar ser interrompido a qualquer momento.

E de emotion. Hora do médico permitir e acolher as reações emocionais de sua paciente em um momento de grande fragilidade que ele supunha jamais flagrar naquela mulher considerada tão segura até então. Ambos sentiram um aperto no coração.

Apertaram-se as mãos buscando energia um no outro para continuar a falar sobre tão insólito tema. O jovem percebeu que uma lágrima ameaçava cair dos lindos e bem maquiados olhos de cor violeta daquela mulher. Ela era extremamente vaidosa. O profissional baixou os olhos, como se pedisse perdão por não têla poupado de tal infortúnio e simultaneamente segurava com delicadeza as mãos macias e adornadas por belos e caros anéis, com unhas bem pintadas em um tom discreto, porém elegante. Ela não queria que ele sentisse pena dela. Ela não era arrogante, mas não era simples, não era uma personalidade complicada, mas não era descomplicada tampouco. Difícil definir. Basta dizer: era mulher. Talvez o gênero explique, ou não, pois em tempos modernos falar em gênero pode não ser politicamente correto e já não temos territórios delimitados. “Cada um sabe a delícia de ser o que é”, segundo o indefinido Caetano Veloso. Ah, vou ligar o “dane-se!”. Era mulher e ponto final. Muitos amores, muitas frustrações, grandes momentos amorosos, amantes não tão grandes assim. Enfim… amou muito e foi amada, não tanto quanto gostaria de ter sido ou merecido. Mas viveu poucas, longas e boas histórias. Com princípio, meio e fim. Tudo isso ela passou em revista, como em um filme, com cenas aceleradas e patéticas. Produziu um trailer de quinta categoria, enquanto o médico continuava falando sem parar e dizendo coisas que ela teimava em não ouvir. Até que ele foi forçado a perceber que tinha que fazer um pouco de silêncio, aguardar ela se organizar emocionalmente diante do tal impacto, pois parecia que ela havia saído sem dar sinal que ia voltar. Mas tudo isso foi por um breve instante. A ficha caiu. Aquilo era real ainda que com tons cinza, cores sombrias, típicas de pesadelo. Ela precisava deste momento de introspecção, como um mecanismo de defesa e manter-se inteira, o que nas suas aulas chamava de fase de depressão frente ao luto ou a má-noticia, para poder em seguida, colaborar e fazer adesão ao tratamento.

S de summary or strategy. Hora de ver se tudo havia sido esclarecido e quais as estratégias terapêuticas que adotariam doravante. Missão difícil, porém cumprida pelo jovem doutor. Ela relembrou esta fatídica consulta com lágrimas poderosas, porém silenciosas, tentando resgatar palavra por palavra, frase por frase, pensamento por pensamento, de todas as cenas daquele encontro, como uma forma de voltar a ter controle sobre si, sua vida e suas tomadas de decisão.

Hora de fazer o seu testamento vital, aquelas diretivas antecipadas de vontade que todos têm autonomia e, por conseguinte, direito de declarar e que ninguém o faz, como uma forma, talvez, de negar a única certeza da vida: a morte; ou uma forma de se defender e não pensar sobre o tema, acreditando na imortalidade.

Ela sempre falou tanto disso em sala de aula. Pois bem, precisava ser rápida para impedir que qualquer tentativa de prolongar sua agonia, fosse exercida com rigor, por algum ex-aluno zeloso demais e que exerça com maestria o furor curandis, tão próprio dos jovens incautos.

Ela ao chegar em casa, imaginava que se afogaria no seu largo rio de lágrimas, porém surpreendentemente, os olhos violeta de intenso brilho, secaram, e ela se dirigiu à sua adega e escolheu um dos seus melhores e prediletos vinhos de guarda, safra 2000, que envelhecia em silêncio, deitado em berço esplêndido, com robustez, aguardando um momento festivo para ser degustado. Ela sempre apreciou boa comida, música de qualidade e bons vinhos. Sempre foi generosa e abria eventualmente as portas de sua casa, pintada em tons pasteis com detalhes azul bebê, para os amigos queridos, servindo as melhores iguarias, quais sejam, risadas, brincadeiras e abraços, temperados ao vinho e ao melhor azeite trufado.

A ocasião era indubitavelmente especial, ainda que a princípio não diria que fosse festiva e isso, claro, iria demandar um magistral Barolo em sua taça preferida de cristal, lembrança de uma de suas inúmeras viagens: Praga. Capitulou e reconsiderou aquilo um evento especial: uma festa de despedida.

Enquanto percebia os aromas típicos daquele maravilhoso vinho italiano, produzido em Piemonte com uvas Nebbiolo, os seus pensamentos começaram a se organizar de forma mais clara e objetiva. Ela acreditava que Barolos eram vinhos de meditação. Seus olhos percorreram a imensa sala vazia de novos projetos, porém plena de sonhos realizados, fantasias, desejos e lembranças registrados em pequenos objetos, alguns comprados, outros herdados, amealhados em toda a sua vida e ainda muitas fotografias de momentos marcantes.

Pensava no blá blá blá que escreveria no seu testamento vital e simultaneamente se regozijava por estar bebendo o vinho preferido do Rei Vittorio Emanuele II e passava em revista as razões pelas quais o Barolo era conhecido como o vinho dos reis ou ainda, o rei dos vinhos.

A Nebbiolo e a Sangiovese eram as suas uvas preferidas, ambas elegantes com taninos marcantes que dão uma estrutura muito própria e muita personalidade aos seus vinhos. Acreditava de fato, que a sua personalidade era tão forte quanto os taninos de suas uvas preferidas. Saberia administrar mais esta travessia que se avizinhava para que este melancólico final de vida não fosse equivalente a um retro gosto amargo.

Pensou em seguida, que talvez nem fosse preciso escrever aquelas coisas para não perder tempo, pois afinal, hoje, salvo os médicos que vieram de fora, todos os jovens médicos foram seus alunos e todos conheciam as suas diretivas antecipadas de vontade. “Lembrem-se meninos, distanásia (prolongamento de vida com tratamento fútil) equivale a uma tortura. Permitam que a morte se instale com naturalidade e cuidemos da qualidade do restinho da vida do nosso paciente, tirando a dor e o pondo para dormir”.

Ela repetia em sala de aula que queria morrer em casa, sem tubos enfiados nos seus orifícios, escutando o cachorro latir, a algazarra dos netos, o cheiro que vinha da sua cozinha. Isso é morrer com dignidade. Hoje, é cada vez mais frequente a hospitalização da morte. Todos temem fazer luto em vida e que seu ente querido morra em casa, pois os deixariam assombrados pelo seu último olhar e palavras de adeus. Sentir-se-iam culpados pelas suas próprias fraquezas e pecados cometidos.

Os responsáveis pelos pacientes, familiares, são egoístas na hora da morte e associam-se ao desejo dos médicos de salvar e curar, enveredando-se em um caminho sem volta, prolongando de forma cruel a vida sofrida, dolorosa e inútil de alguns pacientes terminais, não deixando que eles partam de forma elegante. A partida é desejada em alguns momentos nesta reta final. Mais do que isso. Ela é necessária.

Enquanto escrevia pensava quão polêmico são os temas: final de vida, a morte e o morrer! Foram milhares de seminários nestes 30 anos de docência. Os seus alunos adoravam os calorosos debates. Por que será que o Conselho Federal de Medicina, o Congresso, os juristas teimam em evitar reflexões sobre estas questões, limites e nuances entre ortotanásia, eutanásia, suicídio assistido?

Não estamos falando de uma decisão médica ou familiar. A professora era categórica: isso é crime, homicídio! Ela se referia e defendia uma posição definida, apontada e registrada pelo próprio paciente, quando ainda podia expressar seu desejo. Ela defendia a ortotanásia e os cuidados paliativos. Ela defendia ideias, talvez insuportáveis pela maioria das pessoas e dizia para os alunos “Crianças, ajudem-me a morrer quando chegar a hora.

Mandem-me para casa, mas antes instalem a minha bombinha de infusão de morfina, quero livrar-me da dor. Quero me despedir da família e depois adormecer. Adormecer para sempre”.

Ela se apropriava daquilo, como se por deliberação própria ela tivesse decidido que era hora de despedir-se da vida e tinha por missão organizar as coisas para os seus sucessores e começar a fechar o jogo, de sorte que as cartas passassem a ter um sentido lógico e sua vida fosse por ela mesma reconhecida como tendo sido boa, prazerosa, útil, produtiva e que algum legado estaria deixando para os filhos e netos, para seus alunos, pacientes e amigos.

Ela se serve de mais uma taça daquele vinho de cor vermelha granada cujos reflexos laranja podiam ser percebidos graças à boa luz que atravessava a taça apoiada sobre a toalha de linho branco. Sim, era aquela toalha que ela tinha tantos ciúmes e que pertenceu a sua avó.

Volta a sentir os aromas intensos, harmoniosos e persistentes daquele vinho piemontês e que trazia no paladar entre outros sabores, os da amora, baunilha, café e saudades. Era um vinho maduro, complexo como ela. Os anos passaram-se rapidamente ela nem percebeu. A vida é breve, e dela é hora de começar a se despedir do seu jeito especial de ser: elegante, sem pieguices, rindo com genuína alegria e brindando, tanto quanto ainda lhe for possível, os bons momentos de felicidade que gozou e que ainda pode usufruir. Difícil desafio, pois sabe que terá que fazer o luto da própria morte que naquele dia lhe foi anunciada.

Ela percebe uma nova lágrima que teima em rolar sobre o seu ainda lindo rosto tão bem emoldurado pela vasta e farta cabeleira que a torna tão feminina. Não está triste e nem infeliz, apenas nostálgica.

Um dia ela partiu e deixou saudades.

 

 

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