Violência obstétrica: uma realidade ignorada

Não faz muito tempo e uma influencer famosa, Shantal, expos em rede social que sofreu violência obstétrica e apontou o médico Renato Kalil como autor de comentários, grosserias e palavras de baixo calão durante o parto da filha dela.

Foi um escândalo e escancarou algo corriqueiro nas maternidades e que os protagonistas, vítimas e algozes, independentemente de classe social, legitimam com o silêncio, como se o normal fosse parir com sofrimento e humilhação.

Infelizmente este é um fenômeno que está acontecendo no mundo inteiro e que parece ser invisível e negligenciado.

Até pode se pensar que se trata de uma realidade de terceiro mundo. Não. Nos enganemos.

Estamos abordando um tema muito delicado, ignorado pelos Conselhos Regionais de Medicina que não fiscalizam, escondido pelas maternidades, evitados pelas Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia, por temerem macular suas imagens e as de alguns médicos – alguns famosos como o Dr. Kalil – e, pasmem de médicas também, que são torturadores perversos, Enfim, é um tem e que traz muita dor, constrangimento e sofrimento às vítimas.

A violência obstétrica é um paradoxo, porquanto tratar-se de uma apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres aviltados por profissionais de saúde, categoria que deveria respeitar, acolher e proteger as mulheres.

É o equivalente a um estupro: deixa marcas e sequelas no corpo e na alma, traz severas repercussões na vida sexual e reprodutiva, danos na sua saúde mental que se torna comprometida com prováveis transtornos pós-traumáticos, e na qualidade de vida das parturientes.

O aluno de graduação do curso de Medicina da Universidade Federal de Sergipe Jhonas Vitor Araújo Santos, sob a orientação da professora e doutora Júlia Maria de Gonçalves Dias, realizou uma pesquisa sobre a percepção da violência obstétrica de acordo com o tipo de parto.

Naquela pesquisa, que tive o prazer de contribuir comentando o texto, tomei conhecimento de que as maternidades de Aracaju não deram autorização para a coleta de dados, provavelmente por reconhecerem as próprias más práticas. Peço perdão àquelas casas de parto por fazer aqui uma inferência maliciosa e maldosa.

Enfim, os pesquisadores tiveram que modificar os seus instrumentos e estratégias apresentadas ao Comitê de Ética em Pesquisa – projeto aprovado -, para alcançar os seus objetivos, procurando estas mulheres fora das maternidades.

Este texto de hoje, caro leitor, é um recorte do que escrevi em parceria com a professora Júlia quando, juntas, advogamos que profissionais sejam conscientizados da importância de se prepararem adequadamente no que tange à técnica, à ciência e, principalmente, que exerçam as suas habilidades de comunicação de forma empática e humanística, para garantir autonomia a paciente, com boas práticas que respeitem a fisiologia de cada gestante, e lhes assegurem acolhimento e bem-estar, trazendo mais benefícios do que danos, como preconizam os cânones hipocráticos.

Existem muitos aspectos que vêm sendo desrespeitados sistematicamente nos serviços públicos e surpreendentemente nos privados também. As más condutas vêm sendo perversamente naturalizadas e, através do currículo oculto, transmitidas para os acadêmicos de Medicina, perpetuando a realização de procedimentos danosos e proscritos.

No estudo de Jhonas, ele traz a legislação, portarias e resoluções vigentes que asseguram à mulher escolher a via e a posição que deseja parir seu bebê, evitar o uso de fármacos que muitas vezes é apenas para acelerar o parto e dar conforto à equipe de profissionais do que favorecer à parturiente e ao bebê dela; utilizar criteriosamente os recursos tecnológicos disponíveis e evitar intervenções desnecessárias e que devem ser cuidadosas, evitando-se os excessos, onde se incluem manobras abjetas e cortes desnecessários no períneo da mulher – episiotomia; e ainda o seu direito a um acompanhante, nem sempre respeitado, e que com sua presença, nem sempre permitida, deveria inibir maus-tratos físicos, assédio moral com palavras e expressões desrespeitosas.

Durante o parto, grosserias, piadas com a parturiente violada nos seus direitos, por falta de civilidade, é uma tônica comum. Tais práticas, inclusive, podem se enquadrar como tortura, uma vez que são procedimentos aviltantes, degradantes, desumanos e cruéis.

Mais grave ainda é praticar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no país, a exemplo da manobra de Kristeller, uma técnica obsoleta, com ajuda de auxiliares na sala de parto, que literalmente montam sobre a paciente, fazendo pressão na parte superior do útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê. Este é um ato recorrente nas salas de parto, colocando mãe e bebê em risco.

Absurdamente, os estabelecimentos de saúde parecem ignorar que estes também respondem ao Conselho Federal de Medicina e que os diretores técnicos também serão responsáveis pelos atos ali praticados, por sua omissão na sua função de gestor e por cobrir e esconder, sem denunciar tais práticas que ferem a dignidade humana.

Como professora de Ética médica e inspirada na pesquisa, alerto médicos e estudantes de Medicina sobre essas conduções e comportamentos profissionais durante o parto e, mais importante ainda, que as pacientes se apropriem dos seus direitos e denunciem as más práticas e os abusos que violam a dignidade das mulheres em um momento tão especial de suas vidas.

Desejável que durante o parto, esta mulher torne-se a protagonista de sua história e por estar tão sensibilizada por um momento desejável, especial e único, mas também cheio de medos e expectativas, porquanto o desconhecido, receba confiança, carinho e respeito com um verdadeiro suporte empático do médico e da equipe de enfermagem.

Que todos juntos possam transformar aquele momento da chegada de um bebê ao mundo num instante mágico e que seja permitido – na medida do possível – que a natureza faça o seu trabalho, com menos intervenções possíveis, sem patologizarmos o que é belo e natural.

originalmente do JLPolitica.com.Br

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